• Posted by : Testarossa sábado, 4 de junho de 2022

     


    Tem certas obras que dificultam muito a vida de quem gosta de escrever análises condizentes com a obra que consumiram. Geralmente, isso acontece sobretudo com as boas obras, até porque falar mal das coisas é a prática mais fácil que existe. A Visual Novel nomeada de SeaBed é um desses casos. Essa é minha segunda Visual Novel favorita, uma obra que até hoje eu posso dizer ser uma das experiências mais únicas que já tive com a ficção. Por causa disso, eu até hoje nunca escrevi sobre a obra. Mas, agora esse passo será dado.

    SeaBed é uma Visual Novel que tem uma duração média de cerca de umas 20 horas. Não há escolhas, nem finais diferentes, tampouco conteúdo 18+ (Embora tenha uma ou outra cena mais íntima, mas nada explícito). Na verdade, a obra está muito mais para uma VN indie do que algo de grande produção. E esse provavelmente foi um ponto chave para que o conjunto da obra se tornasse algo tão único e especial. Ela tem tradução para o inglês, mas infelizmente não tem para o português. Ao menos não até o momento da publicação desse texto. Esse pode ser um fator determinante para desanimar muita gente, visto que a escrita da obra não é tão fácil de digerir, sobretudo se você não for familiarizado com o idioma em si. Dito isso, vamos a análise.



    Nome da Visual Novel: SeaBed / Sea Bed, シーベッド

    Duração: Média (Cerca de 20 horas)

    Desenvolvedora: paleontology

    Lançamento: 25/01/2016

    Idioma Original: Japonês

    Tradução: Inglês, Russo, Chinês, Coreano, Espanhol

    Plataformas: PC (+ Steam) e Nintendo Switch


    SeaBed é uma obra de mistério e slice of life. Por conta disso, vou evitar todo tipo de spoiler possível. Essa não é uma experiência que você vai querer prejudicar. Dito isso, a citação dos gêneros da obra também foi um meio de situar vocês de como ela funciona conceitualmente. SeaBed, em essência, é um slice of life. Mas há mistérios na trama que movimentam ela, só que de forma velada. Confuso? Provável, mas o que eu quero dizer é que em quase nenhum momento vai ter aquele clima de obras de mistério que você esperaria, inclusive as revelações são genialmente feitas de forma casual, porque a narrativa é tão bem construída que você liga os pontos enquanto lê e é incentivado a pôr a cabeça para funcionar de tempos em tempos. Uma das experiências mais surreais que tive foi solucionar um mistério durante uma cena aleatória porque alguma frase da Visual Novel instigou a minha mente a chegar naquela conclusão. Gostaria de ter vídeos gravados da minha expressão de surpresa e choque durante um diálogo absolutamente comum e que deixaria qualquer um confuso com o que estava acontecendo. É um negócio mágico.



    A história é simples, acompanhamos o dia a dia do trio de protagonistas Sachiko, Takako e Hibiki. A Sachiko e a Takako principalmente, visto que elas não só são amigas de infância, mas também são namoradas e trabalham na mesma empresa. A relação das duas, de amizade e amorosa, é um núcleo fundamental da trama, que se constrói muito em cima disso. A obra tem uma narrativa não-linear, então estamos constantemente indo e voltando em diferentes períodos da vida das duas, onde esses vários flashbacks não só ajudam a tornar essas personagens em figuras memoráveis, como também auxiliam no desenvolvimento dos mistérios da obra. A relação das duas é uma coisa maravilhosamente orgânica, há uma naturalidade tão bem encaixada que é impossível não se apegar àquele dia-a-dia que elas vivem. A Hibiki é uma amiga do casal e psicóloga que entra na trama após a Sachiko acabar se consultando com ela. No meio desse slice of life terão alguns momentos estranhos, quiçá até meio sobrenaturais, que vão montando o palco para os mistérios da obra. E então, a narrativa segue um modelo de mudança de perspectiva onde acompanhamos o ponto de vista de cada uma das três em revezamento.



    Chega a ser uma tarefa difícil apontar os erros que eu acredito que SeaBed possa ter, visto que a única coisa que realmente me incomodou foi o ritmo da trama ficar lento demais em alguns momentos. Geralmente a obra consegue manter um bom ritmo entre as cenas, mas em alguns pontos acaba se esticando demais e ficando um pouco cansativo. Há alguns personagens secundários que são pouco trabalhados, mas acaba não sendo relevante ao ponto de afetar a trama. Por fim, a escrita da obra é bem densa, o que não é um problema e pode até ser um acerto, dependendo da pessoa, mas pode dificultar o ânimo da leitura caso não esteja acostumado. Não é uma linguagem complexa, tipo muito da literatura clássica, mas é uma escrita muito descritiva, com parágrafos longos e ideias extensas que se conectam uma com a outra, sem dar muito espaço para aquela pausa de descanso, a não ser nos finais de capítulo. Além disso, não há um indicador de quem está falando o quê, algo que pode deixar o leitor um pouco confuso, às vezes. 



    Mas é como eu disse lá em cima, a obra é escrita com maestria e tudo que a obra se propõe a fazer, ela entrega de forma certeira. É uma Visual Novel que consegue puxar as emoções de dentro de você sem realmente parecer estar se esforçando para isso. Pode ser que aconteça contigo o que aconteceu comigo, de ser impactado emocionalmente só pelo contexto que a narrativa criou, onde cada linha de texto consegue te cutucar até que o entendimento de uma cena ao chegar no fim dela seja uma pancada com força total. Toda a narrativa é feita de forma complexa e difícil de entender, mas a escrita facilita muito isso. Com a exceção, talvez, de alguns pontos que acabam pendendo mais para o lado metafórico e exijam uma leitura mais profunda e menos literal do que está acontecendo. 



    As três protagonistas são o centro da trama. Há vários outros personagens, mas tirando um ou outro, eles não são parte do que move a história. Ainda assim, tem muitas interações ou divertidas ou interessantes entre esses personagens e as três protagonistas, todos os personagens do elenco tem seus traços de personalidade bem definido, talvez até características pessoais, qualidades e defeitos. Então, ainda que tenham pouco desenvolvimento ou uma construção pouco elaborada, não são personagens jogados ou mal feitos. Vejo como uma decisão do(a) escritor(a) não gastar muito tempo de tela com eles, por realmente não ser necessário. Tempo esse que foi inteiramente dedicado às três peças centrais da obra, que também ajudou a torná-las tão memoráveis. A Sachiko e a Takako são bem diferentes uma da outra, mas se completam de uma forma até mágica. O fato delas serem amigas e posteriormente um casal, não é um ponto muito tocado na obra, mas sim a vida que elas tinham durante essas duas fases do relacionamento delas. E isso foi um grande acerto, visto que é notável como uma ajuda a outra a crescer como personagem, ainda mais potencializado pela narrativa não-linear, pois vemos com alguma frequência vários "antes e depois". A Hibiki já é uma figura mais completa e impactante, parecido com o papel do mentor em outras obras, aquela personagem que te marca pelo que ela já é e não pelo que ela se torna, principalmente porque ela tem uma presença e carisma muito forte. Realmente não tenho o que reclamar delas. Banalizaram a perfeição porque tem três no mesmo jogo!



    Lembra quando falei que a VN parecia indie? Isso é muito explícito na parte técnica da mesma. Você logo nota isso ao ver o uso constante de cenários que são fotos reais borradas, ao invés de serem realmente cenários desenhados. O uso do formato NVL (Grandes caixas de texto no meio da tela) ajuda a tirar o foco do cenário, mas como eu disse antes, pode dificultar o entendimento de quem está falando o quê em alguns momentos. Isso porque a Visual Novel também não conta com dublagem alguma, é realmente apenas texto. A trilha sonora, no entanto, apesar de simples, é extremamente eficaz e consegue refletir muito bem cada ambiente ou situação. Te leva do conforto ao desconforto com facilidade, consegue te deixar tenso ou melancólico quando precisa. Ela está muito bem inserida dentro da narrativa. Muito porém, em termos de CGs a Visual Novel não deixa a desejar. A obra capricha na quantidade de diferentes cenas ilustradas, o que enriquece muito os momentos que a obra te proporciona. As cenas mais marcantes estão todas lá, ilustradas, claro, mas isso vale muito também para as cenas divertidas do dia-a-dia. Isso porque são imagens que dão aquela velha sensação de uma boa foto com uma história por trás. Então mesmo dentro das limitações geradas pela ausência de um forte investimento financeiro no projeto, a obra consegue ser visualmente muito rica. E muito bela também, pois a arte é muito bonita e o design das personagens é bem atrativo.



    No mais, todas essas limitações são usadas em favor da narrativa da obra, que se aproveita até da sua essência como uma Visual Novel para construir e desenvolver os mistérios apresentados. Eu poderia sonhar aqui com uma adaptação perfeita em anime da obra para que mais pessoas pudessem experienciar essa obra-prima, mas ela não funcionaria se não fosse uma Visual Novel. Isso torna a obra mais especial dentro do nicho, já que usa a mídia que pertence de forma extremamente inteligente para fazer uma trama ainda melhor trabalhada. Assim como animes deveriam aproveitar melhor suas características audiovisuais, mas muitas vezes falham ou hesitam em buscar esse nível de criatividade. Algo que, claro, também é comum em Visual Novels, e é por isso que como SeaBed faz é tão especial quanto o que a obra faz. Ela é daquelas obras que você talvez só tenha dimensão do que está consumindo quando está terminando, mas se parar para rejogar vai ser uma coisa totalmente diferente da primeira vez. No meu caso, uma segunda olhada na obra só me fez querer aplaudir o quão bem estruturada toda a narrativa é. 



    Não existe obra perfeita. Porém, se me pedissem para apontar qual é a que chegou mais próximo disso, eu diria que é SeaBed. Ainda que não seja uma obra para todo mundo, seja pelo tipo de escrita, seja pelo excesso de slice of life ou até o formato da mídia. Mas de um ponto de vista do que a obra buscou fazer, eu realmente acho que SeaBed tem qualidades de mais para defeitos de menos. É uma obra que me marcou muito. Digo, olha o tamanho desse texto que eu escrevi sem dar praticamente nenhum spoiler. É uma obra que acredito ser tão especial que vale a pena demais dar uma chance. Mas é aquilo que eu já falei acima, a escrita é densa, ela tem umas 20 horas de duração, mas possivelmente vai demorar muito mais para você terminar caso não tenha o costume de ler livros assim. Talvez você ache muito cansativo, ou não tenha a paciência para ver os mistérios desabrocharem, talvez a obra simplesmente não case com o tipo de conteúdo que você gosta. Mesmo assim, SeaBed é o tipo de obra única que toda mídia tem e que pode ser algo memorável para qualquer um, de dentro ou de fora do nicho (Ainda mais por não ter as complicações costumeiras de sistema de escolhas ou conteúdo 18+). É uma obra que me apresentou uma nova perspectiva de romance, um gênero que eu admitidamente não sou muito fã, fazendo ser admirável e amável a relação da Sachiko e da Takako sem realmente precisar construir a trama em cima desse romance. SeaBed é fantástico, espero que esse texto tenha sido minimamente decente o bastante para apresentar a obra e, com isso, finalizamos aqui. Saraba Da!

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