- Home>
- análise , light novel , manga , review >
- [Review] Murasakiiro no Qualia - Filosofia + Física = Arte!
Quando falamos sobre obras sci-fi, há uma certa concepção específica que vem à nossa mente, que na verdade nada mais é que a concepção básica do gênero e os seus principais clichês e modelos. Quando falamos de Murasakiiro no Qualia, no entanto, o que recebemos é algo completamente fora da casinha. A light novel sci-fi e yuri de 2009 tem uma proposta bem específica em mente que não tem muito a ver com o que estamos acostumados a ver desse gênero. A parte sci-fi da obra, a ciência em si, em nenhum momento é o ponto principal da trama, mas sim um veículo usado para passar uma mensagem. O que pode significar um certo afastamento de quem é muito fã do gênero, mas também poderia significar um afastamento de quem não gosta das partes mais complicadas de sci-fis complexos. Uma ideia arriscada que talvez fosse um tiro no pé, mas bem... Digamos que valeu a pena o risco.
Antes de mais nada, Murasakiiro no Qualia é uma light novel, mas também tem uma adaptação em mangá. Por ser uma novel one-shot, ou seja, de volume único, sua adaptação em mangá pôde adaptar toda a obra sem problemas. Em 99% dos casos, eu trataria o original e a adaptação como coisas totalmente distintas, quase como se fossem obras diferentes. Isso independente se a adaptação é boa ou não, porque no fim das contas é uma perspectiva diferente de uma mesma obra sendo produzida em outra mídia. Porém, Murasakiiro no Qualia é um caso à parte, isso porque a dupla Hisamitsu Ueo, o(a) escritor(a) da novel e Shirou Tsunashima, o(a) ilustrador(a) da novel, foram quem fizeram também a adaptação em mangá de Murasakiiro no Qualia. Então temos um raro caso dos próprios criadores do original sendo também os criadores da adaptação, o que faz a adaptação ser uma leitura do original praticamente perfeita. E, vejam, não estou dizendo isso apenas pelos criadores terem total controle da adaptação, mas também pelo mangá aproveitar sua natureza visual para fazer algo além do que um livro conseguiria fazer só com palavras. Então ambas as versões são excelentes, com suas diferenças, mas com o mesmo espírito, inclusive pela arte da novel e do mangá vir da mesma pessoa. O que eu farei aqui é analisar a obra como um todo, novel e mangá inclusos. Vou citar o que tiver que citar de importante de diferença entre os dois, mas você pode ler o que você a mídia que se sentir mais confortável.
Dito isso, vamos à obra. Murasakiiro no Qualia é dividido em três atos, naquele estilo tradicional de roteiro. Dentro desses três atos, há dois arcos. O primeiro deles sendo o ato 1, o segundo sendo os atos 2 e 3. O ato 1, que é a introdução, é muito interessante e, ao mesmo tempo, nem tanto. A obra tem uma premissa exótica, onde conhecemos a protagonista, Manabu Hatou, ou Gaku, como foi apelidada e o seu cotidiano após conhecer a excêntrica Yukari Marii em um esbarrão no corredor da escola onde as duas acabaram se beijando acidentalmente (Já começa naquele pique!). A Yukari é uma menina super peculiar, pois afirma enxergar os outros como robôs. Não no sentido figurado, mas literalmente mesmo. Robôs, tipo mechas ou até personagens de Mega Man. Obviamente ninguém leva ela a sério, pois não só é algo surreal demais, mas também é algo impossível de se provar. O termo "Qualia" no título da obra não está ali à toa. Esse conceito da filosofia fala sobre a natureza subjetiva das nossas experiências pessoais dentro das nossas próprias perspectivas e como isso é algo simplesmente impossível de se transcrever ou compartilhar. Eu lembro de um exemplo de diálogo que vi num site que era tipo: "Descreva a cor da maçã" - "É vermelha" - "Vermelha como?" - "Vermelha, vermelha mesmo". Não dá para mostrar para outra pessoa como seus olhos veem as coisas, ou como sua mente te mostra o mundo, aquilo é absolutamente só seu. Dessa forma, a obra te impede de ter certeza de qualquer coisa nunca mostrando o mundo pela perspectiva da Yukari, mas alimentando a ideia de que talvez ver as pessoas como robôs não seja realmente só bobeira da Yukari.
Então existe um aspecto filosófico e reflexivo nessa introdução que torna aquilo muito interessante. Por outro lado, enquanto acompanhamos o cotidiano da Gaku, sobre seus hobbies, vida escolar e práticas, tal como ela estar sempre treinando o uso da naginata, temos uma obra de slice of life até que relativamente comum. Talvez você seja como eu e curta slice of life, consequentemente conseguindo se divertir ao longo desse primeiro arco. Mas talvez não seja lá sua praia e isso tire um pouco do seu interesse na obra. Porém, na reta final da introdução, as coisas mudam da água para o vinho muito rapidamente. Se você optar por ler o mangá, a obra vai soltar um spoiler logo na primeira página, para depois ir para o slice of life, talvez até por realmente acreditarem que dar aquele spoiler acabe servindo de combustível para manter os leitores interessados até chegar na "parte boa". Uma escolha que eu pessoalmente não curti tanto, porque se você for ler a novel, a reviravolta realmente vem do nada e consegue te impactar muito mais. Achei mais marcante dessa forma, embora entenda a escolha do(a) autor(a) nesse caso. O final da introdução é bem intenso e, de certa forma, confuso. Há uma cena em específico que talvez seja a única da obra inteira que não dê para explicar, apenas teorizar e tirar suas próprias conclusões.
Quando terminamos a introdução, a obra muda completamente. A condução da narrativa é convincente o suficiente para te deixar inseguro em relação a direção que a obra tomaria após os eventos finais do primeiro arco, de forma que mesmo que voltemos a vida escolar de antes, a adição de uma nova personagem ao cast só te deixa ainda mais desconfiado. De uma forma muito inteligente, o(a) autor(a) mexe com a nossa qualia, nossa perspectiva em relação a novel ou ao mangá, fazendo com que aquela ideia de antes se expanda para além da obra em si. O negócio é que chegamos no segundo arco, e esse é a cerne de Murasakiiro no Qualia. Foi aqui que a novel me ganhou. A obra começa a brincar ainda mais com uma mistura de conceitos científicos e conceitos filosóficos para temperar a narrativa de uma forma muito eficaz, mas também muitas vezes até metafórica. A maioria dos conceitos apresentados são explicados de forma até que bem didática, ao ponto de qualquer um poder entender a ideia geral, mas ter alguma familiaridade prévia com certeza ajudaria bastante. O uso da física quântica pode parecer um pouco assustador, a princípio, mas a complexidade da obra não é tal que não dê para entender se não souber sobre os conceitos abordados. A filosofia e a ciência existem na obra como um meio de passar uma mensagem. Cheguei a conhecer uns conceitos novos que nunca tinha ouvido falar, como Zumbi Filosófico ou o Princípio de Fermat.
O ponto é que a grande temática por trás da obra é algo muito mais mundano do que aparece, mas apresentada como um espetáculo tão exagerado que nos sentimos acompanhando uma grande epopeia lendária que te surpreende muito em cada esquina. Usando o mangá de exemplo, não é que o capítulo seguinte pode te surpreender, mas sim que dentro de um único capítulo, você pode ter 2-3 motivos para ficar boquiaberto. O fato da adaptação em mangá ser um tanto mais frenética no ritmo ajuda bastante, já que a novel é mais cadenciada e te dá bons intervalos entre um momento marcante e outro, o que é um ponto em favor do livro, na minha opinião. Em todo caso, a narrativa consegue alimentar a trama de uma forma que faz a obra ser instigante de um determinado ponto do segundo arco até o fim da história. Mesmo com uma quantidade bem alta de diálogos e narrações, tem pouca coisa em toda obra que está "sobrando", tudo parece ser importante para o que estamos presenciando. Principalmente porque muitos dos temas estão ali, filosofias sendo abordadas, o existencialismo, a própria psicologia de uma forma geral. A física em certo ponto acaba se misturando com tudo isso, porque o propósito final tanto da física quanto da filosofia é agregar na criação da arte.
E aí temos a protagonista, Gaku, que é o grande fator surpresa da novel/mangá. É uma personagem que passa por uma grande metamorfose ao longo de Qualia, e que também enriquece demais a trama e os temas abordados. A Yukari, assim como a maioria dos outros personagens da obra, tem suas peculiaridades e isso é deixado até que claro durante a introdução da obra. Já a Gaku é bem normal, o que é útil para uma personagem no papel de protagonista, mas ela também é bem humana e isso é importante para a obra como um todo, principalmente quando se trata do seu relacionamento com a Yukari. É ela ser humana que permite a obra se desenrolar do jeito que se desenrolou, e esse desenrolar por sua vez permitiu a personagem a ter um desenvolvimento fantástico. Colocando em uma balança, a obra encontrou um equilíbrio ideal entre a protagonista e a trama que fez com que Murasakiiro no Qualia seja narrativamente quase impecável. Claro que sua curta duração impede que outras personagens tenham tanto desenvolvimento, mas para o que a obra se propôs a fazer, não consigo pensar em muita coisa que poderiam mudar.
O mangá entrega spoilers no primeiro capítulo, tem um ritmo mais acelerado que pode atrapalhar na hora de digerir o conteúdo da obra e corta ou resume alguns pontos não tão importantes da novel, mas fora isso, é uma adaptação excelente. Mais do que isso, o mangá é visualmente muito, muito rico, coisa que a novel é impossibilitada de ser por natureza. Não digo isso me referindo ao nível da arte, mas sim como ela é apresentada, tem muitos quadros ou ideias no mangá que são geniais no que tange a narrativa visual. Tem momentos que me arrisco a dizer que são até melhores do que no original, por saber aproveitar o aspecto visual. Acho importante frisar isso porque a adaptação em mangá tem seus defeitos, mas é o que eu considero uma adaptação ideal de outra obra. Murasakiiro no Qualia tem um final ambíguo, embora satisfatório, mas o mangá dá um passo além e adiciona algumas páginas a mais de conteúdo que não existe na novel e que torna o final um pouco mais compreensível, sem realmente abandonar a ambiguidade do original. É uma adição que achei muito boa, e acho que poderia ter tido outras adições de conteúdo original, mas visto que a obra não era popular, é normal ter acabado só com três volumes.
Murasakiiro no Qualia é uma das obras mais surpreendentes que já consumi. Única e cheio de personalidade, foi uma experiência inesquecível que eu quis recomendar aqui. Ambos a novel e o mangá foram licenciados há algum tempo pela Seven Seas e serão oficialmente lançados em inglês no ocidente, a novel ainda esse ano e o mangá só no ano que vem (Em formato omnibus, volume único). Sendo uma viagem super memorável, essa foi uma experiência que me marcou enquanto novel, depois como mangá e, até agora, enquanto termino esse texto e revisito páginas e trechos da obra, ela me marca novamente. Mas, no fim das contas, toda essa minha experiência com a obra é a minha qualia, algo que vocês jamais entenderão por completo, mas espero que esse post ao menos te intrigue o suficiente para você querer ter sua própria experiência. Saraba Da!