Ser vítima de preconceito é horrível em qualquer circunstância, mas isso é ainda mais grave em situações de crise, pois essas pessoas serão sempre as primeiras que os opressores irão desejar descartar. E é assim que abrimos o episódio de estreia de 86, adaptação da novel já premiada e aclamada pela crítica (Inclusive minha). A escolha de título da obra que a autora, Asato Asato, escolheu, provavelmente passará despercebido pela maioria, mas 86 é um termo usado para designar alguém que não deve ser atendido ou que não é bem-vindo. Também usado para indicar alguém que querem "se livrar". Mas isso acaba sendo só um detalhe extra, pois o anime mostra logo de cara a relação da República de Magnólia com o "inexistente" Distrito 86 e contextualiza o significado do título dentro da narrativa. Existe uma guerra entre máquinas acontecendo, mas as máquinas da Republica de Magnólia são, na verdade, tripuladas por pessoas que aquela sociedade não faz questão de tratar como seres humanos (Os mortos são literalmente registrados como "destruído"). Logo, para eles, o número de casualidades é sempre mínimo. Então, obviamente, a relação entre os habitantes da Republica e quem está sendo sacrificado na guerra é devidamente terrível. No entanto, a protagonista, Vladilena (A.k.a. Lena), demonstra forte incomodo com a sociedade em que vive e muita empatia por quem está na guerra lutando, mas sem muitas soluções do que fazer para mudar isso.
Esse episódio de estreia, em termos de roteiro, foi bem introdutório. Foi saudável para o ritmo do anime, usar o primeiro episódio para apresentar um pouco do universo da obra, dos dois protagonistas e das suas realidades totalmente distintas. Passamos um pouco mais da metade do episódio acompanhando a Lena, o que nos permitiu ter uma visão um tanto quanto ampla do que acontece na Republica de Magnólia. Seja as notícias falsas disseminadas pela mídia, as informações ocultadas pelo exército ou o comportamento dos militares e dos cidadãos em si (Militares não fazendo nada, cidadãos vivendo uma vida pacata como se nada estivesse acontecendo). Além disso, tivemos informações o bastante sobre a Lena para entender a personagem. A troca de perspectiva dela para o Shin foi bem eficaz, o contraste entre as duas realidades é óbvio: De um lado uma sociedade muito "perfeitinha", organizada, fria, sem problemas aparentes e com todo mundo muito similar. Do outro lado um grupo mais mundano, diversificado, real, amigável e caótico. A Lena tenta se conectar com as pessoas que estão na linha de frente de forma sensível, mas para as pessoas da linha de frente, ela é só mais uma dentro do sistema que os oprime, alguém dando ordens de uma cabine segura enquanto eles morrem no campo de batalha. Isso é muito bem transmitido no diálogo da Lena com seu antigo esquadrão, onde qualquer simpatia mostrada era respondida com um sarcasmo ácido e desprezo. Isso para não citar as caricaturas desenhadas pelas pessoas do Distrito 86. Diante dessa relação de opressor-oprimido entre os dois lados, além dos boatos sobre o protagonista ser um "ceifador", a Lena terá uma árdua missão pela frente para criar esse vínculo, mas definitivamente nem de perto tão árdua quanto o que quem está na linha de frente da guerra tem que passar. Foi um bom episódio de introdução.
Dito isso. Se além da progressão da história, você também gosta de uma boa narrativa visual, esse episódio definitivamente foi um prato cheio. Gostaria de comentar um pouco sobre isso, pois o episódio tem 3x mais conteúdo quando se para pra absorver o que a narrativa visual está dizendo.
Logo no início do episódio vemos a Lena prestando continência para uma flor. Obras japonesas gostam dos simbolismos usando flores, e nesse caso não poderia ser mais preciso. A flor da cena em questão é um lírio, uma flor historicamente muito relevante, pois foi um símbolo proeminente da monarquia francesa sob a estilização conhecida como flor-de-lis. Na cena em questão, a flor é o grande destaque (A Lena fica desfocada), e isso é para representar tanto a Republica de Magnólia quanto o nacionalismo da Lena. O detalhe importante é que a primeira coisa que nós vemos são duas pétalas caindo, uma antes da continência e outra depois, representado o estado emocional da protagonista em relação a sua nação. O decorrer do episódio nos mostra o motivo. Na última cena da Lena no episódio, vemos que uma nova leva de flores de lírio, mas que não foram colocadas no vaso e estão "embaladas". O take seguinte que faz questão de mostrar tanto a Lena quanto as flores, mas agora com o foco na Lena e o desfoque no lírio, culminando então na decisão dela de entrar em contato com o Distrito 86 fora do horário de serviço, pois ali foi representado o momento em que a sua nação ficou em segundo plano e suas emoções e ideais em primeiro.
Outra boa menção é a estatua no QG que é uma versão distorcida do quadro "A Liberdade Guiando o Povo". No quadro original, a mulher levanta a bandeira e abaixa a arma, enquanto a estatua levanta a arma e abaixa a bandeira. No entanto, como o início do episódio já mostra, essa liberdade só existe para quem tem os cabelos brancos. Isso é ainda melhor ilustrado na base onde o esquadrão do protagonista se encontra, quando vemos um desenho dessa mesma estatua, só que com sua espada apontada para um manequim vestido com o mesmo uniforme que o protagonista e os outros usam, que carrega uma placa escrito "porco" nele e um balão desenhado logo ao lado dizendo "Bem-vindo à base, o mais próximo do céu!". Logo nota-se uma ironia narrativa, onde símbolos com mensagens teoricamente positivas se tornam algo deturpado quando usados por uma nação claramente nociva. A Flor-de-Lis que simboliza também a pureza de corpo e alma, pode então ser interpretada como uma "pureza" ariana, sobretudo pela contundente escolha da cor branca para as flores. A estatua que simbolizaria a liberdade e justiça para o povo, se torna então liberdade só para o grupo seleto que o governo da Republica quer defender. Vale a menção de que, enquanto lírio é a única flor mostrada em Magnólia, no Distrito 86 vemos uma variedade de flores, como forma de representar a diversificação de cada lugar. A própria flor Magnólia (Nome dado em homenagem ao botânico francês Pierre Magnol) simbolizaria pureza e dignidade, o que novamente acaba sendo uma boa ironia. O uso de porcos (E outros pequenos detalhes) parece uma clara inspiração no livro "A Revolução dos Bichos" de George Orwell.
No mais, a direção acertou nas transições, como na cena em que um bolinho cai no chão e faz um barulho nojento, para então cortar a cena para a Lena assistindo algumas pessoas do seu antigo esquadrão morrerem. Os ângulos de câmera estão muito bem colocados e o episódio em si esteve sempre dizendo alguma coisa ao telespectador em praticamente todas as cenas. Foi um episódio visualmente muito inteligente e muito eficiente nos diálogos, ainda que tenha recorrido a um bocado de exposição no caminho. Foi um episódio inicial bem satisfatório para mim, e é sempre divertido ficar analisando esses simbolismos, embora consumam tempo demais também. Minha expectativa é de que o nível de narrativa visual se mantenha mesmo quando a história estiver nos seus momentos mais intensos, seja de ação ou de drama. Se me permitem o trocadilho, de certo um episódio digno de uma nota 8.6. Saraba Da!